Coluna originalmente escrita para o jornal Le Monde Diplomatique, 30/07/18
“A crise consiste precisamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer”. Estas palavras de Antonio Gramsci em seus Quaderni do carcere sublinham um lugar comum da historiografia política: reconhecer que as épocas de mudança representam, em virtude de sua incerteza e sua instabilidade, momentos de risco ao mesmo tempo que de oportunidade.
As Cúpulas Ibero-americanas de Chefes de Estado e de Governo emergiram em um contexto caracterizado pela transição entre uma velha e uma nova ordem global, um contexto que guardava agudas semelhanças com a atualidade. Como projeto político, as Cúpulas foram um ensaio de 22 países que compartilhavam profundas raízes históricas e culturais, mas que eram conscientes da necessidade de conceber novas formas de associação que lhes permitissem navegar uma época de mudanças. Uma época marcada, entre outros acontecimentos e processos, pela queda do Muro de Berlim, a terceira onda de globalização e a democratização de quase a totalidade dos países da América Latina e a Península Ibérica, na década dos setenta e oitenta.
A Declaração emanada da I Cúpula Ibero-americana, celebrada em Guadalajara em julho de 1991, rezava literalmente: ”Ao final do século XX é configurado o surgimento de um novo esquema de organização das relações internacionais. No entanto, seus rasgos fundamentais estão ainda por se definir; não podemos esperar a mudança passivamente, devemos atuar para conformá-lo, temos interesses genuínos que devem ser reafirmados e impulsionados”.
Como se evidencia neste texto, as Cúpulas foram uma aposta. Uma aposta pelo diálogo político ao mais alto nível, ainda em presença de claras diferenças entre os países assistentes. Uma aposta pela diplomacia, o multilateralismo e a cooperação, não só como ferramentas para se adiantar ao futuro, senão também para influir sobre ele e imprimir-lhe uma direção conforme com objetivos compartilhados.
27 anos depois, as Cúpulas Ibero-americanas consolidaram-se como um dos encontros presidenciais mais longevos do mundo. Em um contexto global que novamente mostra signos de esgotamento, procede se perguntar se as Cúpulas conservam sua vigência como projeto político e o quê significam em face ao futuro. Uma vez mais, a humanidade atravessa um período de dúvida e volatilidade, um período de cisnes negros e equilíbrios instáveis que não acabam por configurar um novo balanço de forças. Basta ver as notícias para recordar aquela frase atribuída a John Maynard Keynes, que dizia que, justo quando esperamos que ocorra o inevitável, surge o imprevisto.
O auge do Sul global, a aceleração exponencial da mudança tecnológica, a eclosão das classes médias nos países em desenvolvimento, a expansão da democracia em distintas partes do mundo, tristemente vieram da mão de pressões sem precedentes sobre o meio ambiente, uma desproporcionada concentração da riqueza e a sensação, em grandes segmentos da população, de que o sistema os deixava para trás –particularmente no mundo desenvolvido e especialmente depois da crise financeira–. Justo quando pensávamos que o ímpeto das tendências das últimas décadas era imparável, fomos testemunhas do contragolpe cultural e político, a ressurreição de retóricas nacionalistas, protecionistas e xenófobas, e o questionamento das bases que subjazem à ordem internacional.
As Cúpulas Ibero-americanas, agora mais que nunca, adquirem uma importância renovada, como um espaço que conseguiu evoluir no tempo e se ajustar a distintas realidades.
Frente a esta tela de fundo, as Cúpulas Ibero-americanas, agora mais que nunca, adquirem uma importância renovada, como um espaço que conseguiu evoluir no tempo e se ajustar a distintas realidades. Um espaço que permitiu a continuidade, apesar da mudança, graças a uma vocação de adaptação, pela qual levam o mérito as sucessivas administrações em todos os países que integram a Comunidade Ibero-americana.
Isto, que em retrospectiva parece um resultado provável, dista muito de ser um resultado inevitável. Pelo contrário, a história das relações internacionais está cheia de saídas em falso, de iniciativas que não conseguiram transcender as conjunturas que lhes deram origem ou que perderam fôlego uma vez relevadas as lideranças políticas. Basta pensar na Liga das Nações, no âmbito da diplomacia ou na Área de Livre Comércio das Américas, em matéria econômica, para citar apenas dois casos.
Por isso não deixa de surpreender que as Cúpulas Ibero-americanas tenham sobrevivido a mudanças substanciais na realidade política, econômica, social e cultural dos países da região. Nestes 27 anos, a América Latina quadruplicou seu ingresso per cápita e reconfigurou sua arquitetura social. Pela primeira vez na história, há mais latino-americanos vivendo na classe média que sob a linha de pobreza. Três países latino-americanos pertencem hoje ao G20 e outros três são membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde compartilham foro com a Espanha e Portugal.
Também na cultura e na sociedade foram registradas mudanças tectônicas. Da mesma forma que a Península Ibérica, hoje a América Latina conta com uma cidadania muito mais ativa e exigente, que demanda serviços de qualidade e que é menos tolerante à corrupção, ao desperdício, à ineficiência e à desigualdade. Os países latino-americanos, da mesma forma que os ibéricos, enfrentam também o desafio de gerar inclusão e coesão social em sociedades cada vez mais diversas, onde as transformações sociais e econômicas vão muito mais adiante que as instituições chamadas a lhes dar resposta.
Estas novas realidades incidiram na dinâmica das relações ibero-americanas, de forma que se tornaram mais simétricas, baseadas na horizontalidade, na multiculturalidade, no multilinguismo e na união na diversidade.
A história pôde ter sido muito diferente. É fácil imaginar um cenário em que as Cúpulas Ibero-americanas sucumbiram perante o desinteresse, o receio ou a desconfiança; pelo peso de posturas inflexíveis, impositivas ou defensivas, ou por causa de diferenças percebidas como irreconciliáveis. Se o espaço ibero-americano pôde manter sua validez e oportunidade, foi precisamente porque os atores políticos souberam empregá-lo como plataforma para articular uma visão comum de futuro e para promover valores compartilhados. São valores que hoje estão sob ameaça.
Assistimos a um debate que terá um impacto fundamental na trajetória que seguirmos nas próximas décadas; um debate entre aqueles que rejeitam e aqueles que defendem o sistema multilateral e a própria possibilidade de alcançar mútuos benefícios nas relações internacionais.
Para alguns atores –uns especialmente vogais– o mundo se lê em chave transacional, como um jogo de soma zero onde as nações interagem exclusivamente sobre a base de seu hard power. Essa visão alimenta posturas que tendem ao fracionamento e à confrontação. Trata-se de uma visão simplista e maniqueísta, mas que no entanto guarda um evidente atrativo para aqueles que percebem riscos na ordem global atual.
Sem desconhecer os desafios e as matérias pendentes, a visão alternativa reconhece que é inútil atuar de maneira isolada quando compartilhamos bens públicos globais e quando enfrentamos desafios que transcendem as fronteiras. Perante esta realidade, os atores internacionais devem buscar mecanismos que lhes permitam alinhar seus interesses, coordenar suas ações e gerar valor desde a cooperação, e não só desde a concorrência. Isto entranha a paciente construção de institucionalidade, sem a qual nenhuma conquista é sustentável a longo prazo.
Um exemplo dessa institucionalidade é constituído, precisamente, pelas Cúpulas Ibero-americanas. A próxima XXVI Cúpula Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo terá lugar em novembro em La Antigua, Guatemala, e foi dedicado à implementação da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável sob o lema “Uma Ibero-América próspera, inclusiva e sustentável”. Desta maneira, os 22 países da região resolveram olhar para o futuro, vincular a agenda regional à global, e contribuir com as ferramentas específicas do espaço ibero-americano a um esforço de alcance verdadeiramente universal.
Junto com o Acordo de Paris sobre mudança climática, a Agenda 2030 é um triunfo do multilateralismo e a única narrativa positiva impulsionando-nos a cooperar a escala global. Ainda que tenha sido concebida como uma agenda de desenvolvimento, crescentemente é também uma agenda política, pois reconhece de forma explícita a interdependência de todos os países, de todos os atores e de todos os setores da sociedade.
É uma mensagem que necessitamos reafirmar. No panorama internacional atual, vemo-nos tentados a repetir as palavras daqueles Chefes de Estado e de Governo que se reuniram em Guadalajara faz quase três décadas: estamos perante “o surgimento de um novo esquema de organização das relações internacionais. No entanto, seus rasgos fundamentais estão ainda por se definir”. Não sabemos ainda qual será o “novo normal”. Qual será a ordem que emerja das grandes tensões que estamos observando.
A Ibero-América se soma às vozes que propugnam mais multilateralismo, e não menos. Temos a oportunidade –e a responsabilidade– de ser vetores na direção do diálogo, da cooperação e da solidariedade. A próxima Cúpula chega em um momento determinante e pode nos servir para demonstrar quão sério é nosso compromisso com estes princípios e quão dispostos estamos a inscrevê-los no novo capítulo da história da humanidade.
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