Duas mulheres, dois mundos à parte, uma mesma luta

Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora de ONU Mulheres e Rebeca Grynspan, secretária-geral Ibero-americana, reivindicam a luta feminista para conseguir a igualdade de gênero

Coluna originalmente escrita para o jornal El País, 20/10/2018
AMANDA VOISARD (ONU MUJERES)
AMANDA VOISARD (ONU MUJERES)

Ambas nascemos no mesmo ano, a meio mundo de distância, e em um tempo no qual o gênero determinava as opções das pessoas, da mesma forma que para o resto da nossa geração. No entanto, nas últimas décadas a mobilização social e a mudança política fizeram muito para ampliar essas alternativas, algo que se reflete em nossas trajetórias pessoais. Nossas vidas encarnam as conquistas dos movimentos sociais e feministas que reclamaram a igualdade de direitos das mulheres na educação, no emprego e na participação política.

Logicamente, nossas sociedades ainda têm um longo caminho por diante; os avanços costumam ser lentos demais. Por isso devemos exercer pressão ali onde possa se obter o máximo benefício. Um destes pontos é mudar as leis abertamente discriminatórias: na atualidade, as restrições legais influem negativamente nas opções de mais de 2.700 milhões de mulheres.

Segundo o Banco Mundial, em 104 países existem leis que impedem que as mulheres possam trabalhar em determinados empregos, como por exemplo na mineração; em 59 países as mulheres não estão protegidas legalmente contra o assédio sexual no lugar de trabalho, e em 18 países os maridos têm o direito legal de impedir que suas esposas trabalhem. Do total de 189 nações analisadas, 40% têm ao menos uma restrição sobre os direitos de propriedade das mulheres.

A América Latina não é uma exceção. Em cada país da região há uma média de duas leis, no mínimo, que diferenciam homens e mulheres quanto a emprego e empreendimentos. A maioria das nações latino-americanas carecem de normas que garantam a igualdade de salários e em muitos casos não existe a baixa de maternidade remunerada de 14 semanas, o mínimo estabelecido pela Convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) para a Proteção da Maternidade. E são poucos os países que regulam a licença de paternidade remunerada, que, com frequência, se reduz a uns poucos dias.

Em concreto, as empregadas domésticas continuam lutando para que as leis nacionais as protejam e lhes permitam desfrutar de seus direitos laborais e aceder à segurança social e outros benefícios. Sem isso, correm um maior risco de cair na pobreza e sofrer múltiplas formas de iniquidade.

Unidas pela mudança

Na luta pela igualdade, a legislação e a política podem ser um catalisador positivo para a mudança. Um exemplo é o sistema de quotas eleitorais, que resultou crucial para fomentar a participação política das mulheres e garantir uma massa crítica feminina em postos de poder. Não é uma coincidência que a América Latina, graças à adoção de quotas, se situe entre as regiões do mundo com melhores resultados com relação à presença de mulheres em governos e parlamentos.

A ONU Mulheres e a Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB)  uniram forças para eliminar as barreiras legais que impedem a participação plena e em condições de igualdade das mulheres no mercado laboral, como parte dos esforços globais por cumprir com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

No entanto, a aprovação de normas é só o primeiro passo. É necessário forjar uma ampla aliança para garantir que as leis sejam acompanhadas de políticas adequadas, que sejam implementadas no terreno e tenham um impacto real na vida quotidiana das pessoas, de modo que não só se produza uma mudança legal, senão também cultural.

Inclusive em casos de legislações progressistas, se não se reequilibra o poder, se não há uma mudança nas expectativas das sociedades e, o que é mais importante, tolerância zero frente à violência, não veremos os frutos destas importantes medidas.

O ativismo é fundamental para conetar a estrutura legal com a realidade da experiência e para que haja uma prestação de contas. Neste ano, milhões de mulheres se mobilizaram e manifestaram através das redes sociais, utilizando hashtags como #YoTambien (#MeToo), #MiPrimerAcoso (My First Harassment), #NiUnaMenos (Not One Less) e #NoTeCalles (Don’t Stay Silent).

Leis inovadoras

Por um lado, necessitamos eliminar as leis discriminatórias que não somente são antiquadas, senão que, além disso refletem uma visão paternalista das mulheres no mercado laboral, como proibi-las de trabalhar em determinados empregos ou setores econômicos. Por outro lado, deveríamos adotar normas inovadoras para apoiar a plena participação feminina na economia.

A ratificação da Convenção 189 sobre Trabalho Doméstico da OIT (2011) por parte de todos os países, assim como a reforma de leis e políticas laborais nacionais para adaptá-las a ela, representaria um importante avanço nessa direção.

Outro passo relevante seria calcular o valor do trabalho de cuidados não remunerado para determinar sua contribuição real às economias nacionais, e para reduzir e redistribuir a carga desproporcional deste tipo de labores sobre mulheres e meninas.

Isto nos exige promover uma repartição equitativa de responsabilidades entre as mulheres e os homens, as crianças, o Estado e o setor privado. A provisão de cuidados não só deve ser compartilhada dentro dos lares, senão também mais além de suas paredes, priorizando o desenvolvimento de infraestruturas, políticas de proteção social, serviços de cuidados de qualidade acessíveis em todos os sentidos, e licenças de maternidade e paternidade.

São este tipo de transformações as que produzem um reajuste nos equilíbrios do poder de nossas sociedades e que, ao fazê-lo, contribuem de maneira fundamental a conseguir a igualdade entre mulheres e homens. Somos conscientes de que as mudanças legislativas não são suficientes e que, não obstante, representam sem dúvida alguma um passo fundamental e necessário rumo à igualdade de gênero, à redução da violência contra as mulheres e a uma economia que funcione para todos.

Temos a oportunidade e a responsabilidade de reformar e adaptar nossa legislação para que reflita e faça possíveis as sociedades que anelamos.

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