Coluna originalmente escrita para o jornal El País, 05/07/2019
Na sexta-feira da semana passada foi um dia especial. Um bom dia para a diplomacia e o multilateralismo. Depois de 20 anos, anunciava-se o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. O telefone não parava de tocar: “O acordo mais importante dos últimos tempos!”. “Quatro vezes Japão e sete vezes Canadá” (em referência aos recentes tratados Japão-UE e Canadá-UE).
Eu, logicamente, também celebrei. Faz anos demais que sigo o processo. Conheço, detalhadamente, cada uma das barreiras. As protestas dos agricultores europeus e dos industriais sulistas. O tema da contratação pública e a arbitragem regulatória. O pulmão político que tantas vezes ficou sem ar. As vontades de tantas pessoas, tantos ministérios, tantas lideranças, que tiveram de ser homologadas. As esquinas milimétricas do quebra-cabeça que não encaixava. As longas horas que ficam em silencio.
Mas foi possível. Com um aperto de mãos, o Mercosul passou de ser um bloco intrarregional a ser parte da maior zona comercial do mundo. Graças a este tratado, agora, quase todos os países latino-americanos têm um acordo de associação com a Europa e é possível pensar em um processo que, mais adiante, consiga fazer convergir as regulações técnicas e as regras de origem, e termine por permitir também uma maior integração latino-americana.
Esta possibilidade, unida à aproximação entre a Aliança do Pacífico e o Mercosul, são boas notícias para a região. Agora foi inicializado um centro de gravidade na Latino-América que cedo ou tarde terminará por arrastar a maioria dos países rumo um marco comum de tratados e regulações. Agora há uma coluna euro-americana em meio da tempestade tarifária mundial, com condições comerciais, laborais e meio ambientais comuns.
Desde o Brexit, a UE ampliou sua zona de livre comércio em quase 500 milhões de habitantes
Nenhum pacto, logicamente, é perfeito. Os tratados comerciais têm geometrias complexas: o trabalho do multilateralista é encontrar a configuração onde haja equilíbrio entre as múltiplas assimetrias. Em nosso caso, por muitos anos não pudemos encontrá-la. Sempre nos encontrávamos com alguma linha vermelha infranqueável, alguma postura que, legitimamente, contradizia a outra, e novamente nos víamos perante um quebra-cabeças que não encaixava.
A partir de 2016 buscou-se um novo caminho. O tratado UE-Mercosul triunfou graças à persistência, à vontade, porém principalmente graças à criatividade. As peças por fim encaixaram quando foram levadas para fora do terreno meramente material. Quando começou a se falar mais além de porcentagens tarifárias e quotas de mercado. Quando começamos a falar também de princípios e valores comuns. Essa foi a chave do êxito.
Este tratado é muito mais que um pacto comercial. Dedica capítulos inteiros a p&mes, cooperação para o desenvolvimento sustentável, convênios da OIT, regulações sobre velhos contaminantes e novas tecnologias.
O último obstáculo —o rechaço da França e seus agricultores— foi negociado, já não com quotas materiais, senão com compromissos meio ambientais. Em particular, que o Brasil não saísse do Acordo de Paris sobre Mudança Climática. Em um sprint final, no qual a Espanha desempenhou um papel fundamental lançando uma última chamada que recebeu o apoio de Portugal e outros, foi alcançado o último aperto de mãos.
Três coisas a mais que gostaria de enfatizar: primeiro, que desde que o Reino Unido votou a favor do Brexit, a União Europeia ampliou –com o Canadá, Mercosul e Japão— sua zona de livre comércio em quase 500 milhões de habitantes.
Segundo: que no novo mundo multipolar no qual vivemos, sim é possível alcançar grandes acordos comerciais e de cooperação. A chave está em ser visionários e ter em conta novas variáveis, novas ideias e novos atores econômicos.
E terceiro, que nesta grande reconfiguração geopolítica e comercial que estamos vivendo, a Europa e a América Latina foram das primeiras peças em encaixar. A razão é que, nestes tempos, puderam mais os valores que nos unem do que os interesses que nos separam. Porque o mundo, no fim das contas, não soma zero. E a política e o multilateralismo continuam importando.
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